Existe grande confusão a respeito do que seria criatividade em arquitetura. Tal fato não seria preocupante se não tivesse tantos efeitos nocivos para a prática da arquitetura. Por um lado, uma noção equivocada por parte dos leigos leva a uma demanda por objetos com os quais a arquitetura não deveria se envolver. Por outro, basear uma prática sobre uma noção errada de criatividade significa produzir arquiteturas irrelevantes, na melhor das hipóteses.
Criatividade, segundo o dicionário Aurélio (1ª edição), significa qualidade de criador. Criador é quem cria, e criar é dar existência a algo, tirar algo do nada; dar origem; produzir, inventar, imaginar. O dicionário já indica que o termo não designa uma qualidade especial que distingue um criador dos outros. O próprio ato de criar algo já é indicação de criatividade.
Para leigos (usuários em geral, clientes, imprensa não especializada), estudantes de primeiros anos e até muitos arquitetos, criatividade é algo ligado ao imprevisto, ao insólito, ao surpreendente, cuja obtenção é dependente de um talento superior inato.[1] Daí a existência e os elogios conferidos a edifícios de aparência estranha, cuja lógica é muito difícil de entender. Parece haver uma correlação entre criatividade e variedade, movimento, impacto visual, e outras categorías que levam ao estranhamento. Vista desse ponto de vista, a simplicidade e a elementaridade são sinonimos de monotonia e falta de criatividade. Existem experts em “criatividade” que sugerem todos os tipos de origens para a forma arquitetônica: em alguns círculos é considerado criativo transformar um cinzeiro ou um croissant num edifício. Outros desenvolvem oficinas de sensibilização visando “soltar” a criatividade de estudantes e arquitetos, aparentemente reprimida por uma vida tão preocupada em encontrar soluções para os problemas cotidianos.
Nenhuma dessas pessoas chega realmente a entender o que significa a criatividade em arquitetura. A consequência mais importante e danosa do ponto de vista dominante é que a forma é vista como algo independente, como algo que se acrescenta aos aspectos específicamente arquitetônicos de qualquer problema. A mesma confusão envolve o entendimento do componente artístico da arquitetura, que para muitos é algo externo ao processo projetual.
Como uma aproximação a uma definição mais precisa da criatividade arquitetônica, proponho que o seu significado é diferente do sentido comum e do sentido que tem para as artes plásticas, para a publicidade, para a moda, etc.
T oda atividade criativa é essencialmente solução de problemas. O que divide as atividades criativas em pelo menos duas categorias é a existência, para algumas, de problemas auto-impingidos, consciente ou inconscientemente, como nas artes plásticas, enquanto outras como a arquitetura estão relacionados à problemas externos à disciplina, que podem ser mais ou menos restritivos à liberdade do autor. Em outras palavras, a criatividade só existe, só se exprime, face a um problema real. Simplesmente não há criatividade sem problema referente. Assim, o criativo (ou o artístico) em arquitetura se revela como um modo superior de resolver, através da forma, os problemas práticos que definem um dado problema arquitetônico.
Se o problema da publicidade é persuadir e o da moda é dar forma ao vestir, qual seria o problema da arquitetura? O que establece que a criatividade em arquitetura seja algo específico são várias questões: o uso, o custo elevado e a permanência dos edifícios.
A questão do uso parece óbvia. Sem programa não há arquitetura; no máximo alguma escultura em cujo interior se pode caminhar. O uso/programa indica que necessidade da sociedade precisa de espacialização; sua extrapolação nos leva perigosamente próximos da irrelevância e da irresponsabilidade. Todo programa deriva de um cultura específica, que deve ser o pano de fundo de qualquer realização arquitetônica. A escassez de recursos na América Latina nos obriga a fazer muito com o pouco de que dispomos. Qualquer solução “criativa” -no sentido de elementos não justificados por uma rigorosa lógica de projeto- significará maiores custos sem garantia de aumento de qualidade. E quando falamos em permanência nos referimos não apenas à durabilidade do edifício, dependente da construção correta, mas também da sua capacidade de se contrapor ao caos visual da cidade contemporânea.
O raciocínio desenvolvido até aqui quer indicar que não há nada de criativo em projetar e construir objetos de forma inusitada, empregando geometrias complicadas e caracterizados por diagonais, pontas e outras complicações formais, principalmente porque os recursos citados não respondem a nenhum problema real.
Pelo mesmo motivo não há a menor criatividade em empregar estilos históricos para edifícios contemporâneos, como é a presente moda no Brasil. Pelo contrário, isso só demonstra como são limitados e pouco criativos tanto promotores quanto criadores dessa espécie bastarda de arquitetura.
A verdadeira criatividade em arquitetura reside em resolver seus problemas específicos por meio da síntese formal do programa, do lugar e da técnica, resultando em objetos dotados de identidade formal intensa, a qual deriva do emprego de critérios tais como a economia de meios, o rigor, a precisão, a universalidade e a sistematicidade.
[1] É bem conhecida a afirmação de Oscar Niemeyer no sentido de que sua arquitetura visa criar espanto.
* Originalmente publicado em: coluna Relações, Info IAB/RS, em http://www.iab-rs.org.br/colunas/ar tigo.php?art=74 desde 29/11/2003.